Amanheço
morto na cidade. Tomo conhecimento de que morri logo cedo. Sou um morto muito
especial, porque posso negar a minha morte, abrir a porta e sair andando,
respirando o ar, rever as ruas, os lugares antigos por onde passei quando
criança e que o tempo foi modelando, ora para melhor, ora para pior. Posso
perceber, agora, que alguns lugares é que morreram. Caminho com um ar
importante pelas ruas, porque posso descrever o que desapareceu. O cheiro do Café São Miguel, as meninas do Colégio Municipal,
picolé de mangaba, disco de vinil com o retrato de Carlos Gonzaga, sessões
dominicais de cinema, com sabor de ping-pong, Rock Lane a cavalo. Sou um morto
que pode contemplar o nojo, a paixão e o tédio dos que me rodeiam e me julgam.
Tenho direito a mais um dia, um jantar, telefonar para marcar um encontro. Principalmente,
ir ao encontro e praticar, meticulosamente, a arte de dar e receber amor, como
na milenar receita de Vatsyayana, o Kama Sutra de todo dia. Sinto-me vaidoso de
minha morte. Sem esquife, castiçal, lampejo de vela, coro lúgubre de
carpideiras e meu derradeiro desfile, horizontal, pela cidade.
Respondo a alguém que me telefona para saber a verdade: Morrer na boca do povo faz mais sucesso do que morrer de verdade. Não é todo dia que se é um morto andando pela cidade.
Respondo a alguém que me telefona para saber a verdade: Morrer na boca do povo faz mais sucesso do que morrer de verdade. Não é todo dia que se é um morto andando pela cidade.
Sosígenes Bittencourt
3 comments:
Alguém, me pergunta, em tom sarcástico: - Sosígenes, você andou morrendo? / E eu respondo, apressado: - Estou sem tempo para a morte.
Não foi só uma vez que ME MORRERAM. Porque já que não me matam, apenas inventam minha morte, eu resolvi criar uma transitividade verbal particular: MORRER-ME, MORREREM EU, ME MORREREM. E a inscrição tumular vazia: AQUI NÃO JAZ.
muito bom, nunca mas tinha lido textos tão empolgante! sucesso.
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