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Amanheço
morto na cidade. Tomo conhecimento de que
morri logo cedo. Sou um morto muito especial, porque posso
negar a minha morte, abrir a porta e sair andando, respirando o ar, rever as ruas, os lugares antigos por onde passei quando
criança e que o tempo foi modelando, ora para melhor, ora para pior. Posso perceber, agora, que alguns
lugares é que morreram. Caminho com um ar importante pelas ruas, porque posso descrever o que
desapareceu. O cheiro do Café São Miguel, as
meninas do Colégio Municipal, picolé de mangaba, disco de vinil com o retrato de
Carlos Gonzaga, sessões dominicais de cinema, com sabor de ping-pong,
Rock Lane a cavalo. Sou um morto que pode
contemplar o nojo, a paixão e o tédio dos que me rodeiam e me julgam. Tenho direito a mais um dia, um jantar, telefonar para marcar um encontro. Principalmente, ir ao encontro e praticar, meticulosamente, a arte de dar e receber amor, como na milenar receita de
Vatsyayana, o
Kama Sutra de todo dia. Sinto-me vaidoso de minha morte - sem esquife, castiçal, lampejo de vela, coro lúgubre de carpideiras e meu derradeiro desfile, horizontal, pela cidade.
Respondo a alguém que me
telefona para saber a verdade:
Morrer na boca do povo faz mais sucesso do que morrer de verdade. Não é todo dia que se é um morto andando pela cidade.
Sonho com alguém me perguntando:
- Sosígenes, você andou morrendo ?
- Não, ando sem tempo para a morte.
Sosígenes Bittencourt
5 comments:
Já que o senhor morreu várias vezes, poderia nos dizer como é do outro lado? rs... Ressuscitado abraço.
Na realidade, eu não morri, nem me mataram, "me morreram" - verbo que criei para traduzir quando inventam minha morte. Portanto, como não passei para o outro lado, posso também inventar o outro lado. Quando me imaginei morto, inventei um planeta só de mulheres, o que traduz minha compulsão metafísica pelo gênero feminino.
Inventado abraço!
sosigenes tú es demais esta do morto andando pela ruas e brincadeira parabém vivo abraço
sosigenes me deixa perguntar este menino já fala
Quando perguntaram a minha genitora: - Esse menino já está falando, Damariz?
Ela foi peremptória: Já está apanhando pra ficar calado.
Falante abraço!
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