* 19/07/1955
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Amanheço morto na cidade. Tomo conhecimento de que morri logo cedo. Sou um morto muito especial, porque posso negar a minha morte, abrir a porta e sair andando, respirando o ar, rever as ruas, os lugares antigos por onde passei quando criança e que o tempo foi modelando, ora para melhor, ora para pior. Posso perceber, agora, que alguns lugares é que morreram. Caminho com um ar importante pelas ruas, porque posso descrever o que desapareceu. O cheiro do Café São Miguel, as meninas do Colégio Municipal, picolé de mangaba, disco de vinil com o retrato de Carlos Gonzaga, sessões dominicais de cinema, com sabor de ping-pong, Rock Lane a cavalo. Sou um morto que pode contemplar o nojo, a paixão e o tédio dos que me rodeiam e me julgam. Tenho direito a mais um dia, um jantar, telefonar para marcar um encontro. Principalmente, ir ao encontro e praticar, meticulosamente, a arte de dar e receber amor, como na milenar receita de Vatsyayana, o Kama Sutra de todo dia. Sinto-me vaidoso de minha morte. Sem esquife, castiçal, lampejo de vela, coro lúgubre de carpideiras e meu derradeiro desfile, horizontal, pela cidade.
Respondo a alguém que me telefona para saber a verdade: - Morrer na boca do povo faz mais sucesso do que morrer de verdade. Não é todo dia que se é um morto andando pela cidade.
Lembra-me os versos de Mário Quintana:
Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
Sonho com alguém me perguntando: - Sosígenes, você andou morrendo ?
- Não, ando sem tempo para a morte.
Sosígenes Bittencourt