Friday, July 27, 2007

Um morto andando pela cidade



* 19/07/1955
+ (?)

Amanheço morto na cidade. Tomo conhecimento de que morri logo cedo. Sou um morto muito especial, porque posso negar a minha morte, abrir a porta e sair andando, respirando o ar, rever as ruas, os lugares antigos por onde passei quando criança e que o tempo foi modelando, ora para melhor, ora para pior. Posso perceber, agora, que alguns lugares é que morreram. Caminho com um ar importante pelas ruas, porque posso descrever o que desapareceu. O cheiro do Café São Miguel, as meninas do Colégio Municipal, picolé de mangaba, disco de vinil com o retrato de Carlos Gonzaga, sessões dominicais de cinema, com sabor de ping-pong, Rock Lane a cavalo. Sou um morto que pode contemplar o nojo, a paixão e o tédio dos que me rodeiam e me julgam. Tenho direito a mais um dia, um jantar, telefonar para marcar um encontro. Principalmente, ir ao encontro e praticar, meticulosamente, a arte de dar e receber amor, como na milenar receita de Vatsyayana, o Kama Sutra de todo dia. Sinto-me vaidoso de minha morte. Sem esquife, castiçal, lampejo de vela, coro lúgubre de carpideiras e meu derradeiro desfile, horizontal, pela cidade.

Respondo a alguém que me telefona para saber a verdade: - Morrer na boca do povo faz mais sucesso do que morrer de verdade. Não é todo dia que se é um morto andando pela cidade.

Lembra-me os versos de Mário Quintana:

Da primeira vez em que me assassinaram

Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...

Depois, de cada vez que me mataram,

Foram levando qualquer coisa minha...

Sonho com alguém me perguntando: - Sosígenes, você andou morrendo ?

- Não, ando sem tempo para a morte.

Sosígenes Bittencourt

5 comments:

Anonymous said...

Não se preoculpe,sua nota de falecimento OTONI RODRIGUES,já a REDIGIU.Enquanto isso,seja um DIFUNTO feliz.

Anonymous said...

Não se preoculpe,sua nota de falecimento OTONI RODRIGUES JÁ A REDIGIU.Enquanto isso,seja um DIFUNTO feliz.

Sosígenes Bittencourt said...
This comment has been removed by the author.
Sosígenes Bittencourt said...

O verbo falecer é intrasitivo: Eu faleço, tu faleces, ele falece, nós falecemos, vós faleceis, eles falecem. No meu caso, ele tem uma estranha transitividade: Eles me falecem.

John D. Godinho said...

SONNET XVII

The very first time that I was murdered
I lost my smile, the way I used to be...
Then, each time they came
and I was killed again
They always took something that belonged to me...

Today, of all my bodily remains,
I am the barest corpse with nothing left
The burning flame of a yellowed candle stump
Is the only thing of value that survived the theft!

Come, all you jackals, crows, and highwaymen!
Ah! None will succeed, should you to try to sever
Or wrest from my bony hand the sacred light!

Birds of Night! Wings of Horror! Fly out of sight!
For the burning light, a sad and trembling sigh,
The light of a dead man will never die!

Mario Quintana
(Translated by John D. Godinho)
Sonnet XVII in Pinwheel Street.