Thursday, July 05, 2007

O rato


A princípio, eu pensei haver sido um rato. Aliás, pela pancada na porta do apartamento, um rato grande, ou seja, um guabiru. Então, com receio de que fosse mesmo o repelente flagelo das civilizações, temi abrir a porta. Em seguida, ouvi ruído de papéis na garagem. Quase não havia dúvida. Mas, como passei a ouvir abrir de caixas, o som da grade do terraço e da estante esmaltada, passei a pensar que fosse meu pai. Porém, o que estaria fazendo meu pai ali, de madrugadinha, sem medo de me fazer medo? – perguntei, cá com meus botões. Minhas mãos ficaram frias, o sangue me fugira das extremidades, o cabelo se me arrepiara. Não, não era um rato, o transmissor da leptospirose, nem meu pai, não era nada disso. Pelo temor redobrado que sentia, intuitivamente, devia ser um rato humano. Pensei em ligar para a polícia, porém o ladrão poderia estar armado, pois ladrões não obedecem lei de desarmamento. Tive medo de que tentasse arrombar a porta. Ladrões que penetram em imóvel alheio, na calada da noite, são arrombadores. E os de hoje não usam mais roupas de ladrão como antigamente, máscaras, nem vêm de longe. Às vezes, são moradores do bairro, desses que vão à igreja, casamento, torcem pelo nosso time e tiram nossas namoradas para dançar. Na minha biblioteca e no meu apartamento não tem arma, tem alma, literatura e ciência. Finalmente, um silêncio expectante tomou conta da garagem e biblioteca ao lado. Esperei que o galo anunciasse a manhã e os passarinhos sobrevoassem o cômodo onde repousam as coleções de livros. Quando contemplei pelas janelas a aurora e inalei o eflúvio matutino, abri a porta e penetrei no espaço violado pelo rato. O rato era mesmo a metáfora de um homem. Tudo revirado, não levou um romance; sequer a Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, onde se lê “Morte do Leiteiro”. Mas, em meio ao desapontamento, uma constatação óbvia: o ladrão era narcisista, pois roubara o meu espelho.
Sosígenes Bittencourt

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